3 de abril de 2006

Querida C,

Já era Outono?

O clima do mundo enlouquece, e se é difícil de senti-lo de dentro das cidades, mudar de habitação duma pra outra aumenta a dificuldade ainda mais - ainda mais que ele não confiava mais na sua sensação de "natural"; e numa cidade nova, como sentir o que já mudou? As pessoas são insuspeitas do que as cerca; as pessoas não tem uma sensibilidade confiável.

Queria escrever uma carta erótica. Na verdade, queria fazer amor, ali mesmo, sexo de um tipo completo. De um tipo que te torna diferente e cambaleante, bambo e feliz. Mas como ele parecia agora conseguir estar onde estava, a possibilidade de amar transcedentalmente alguém enquanto sozinho num apartamento era menos do que remota. Uma carta ele sempre poderia escrever.

Livre de quem o dissesse o que estudar, havia descoberto que podia ler vários livros ao mesmo tempo, como quem vai a diferentes aulas. A autonomia do seu próprio ensino o estava maravilhando. Toda nossa aprendizagem deveria ser como a de quem viaja por um país, pensava. E vai aonde quer, sobe os morros que conseguir, ou então mergulha em um lago; e pede indicações para os nativos - ou outros viajantes - que lhe parecerem mais simpáticos, mais interessantes.

Queria fazer de todos os seus estudos e descobertas uma coisa só. Deixar tudo vivo dentro de si e estar inteiro no que fizesse, levando tudo isso consigo não como quem carrega malas, mas como a própria pele; como a rede neural quase imaterial que tem todas as possibilidades de sensações. Não seria um especialista em nada além do momento. Não fugiria em protocolos, não seria dominado pelo sujeito social. Não venderia sua alma, nem como um discurso para salvar-se.

Tudo o que faria seria fazer arte. E sua única segurança seria a generosidade de estar aberto. O trabalho era não se permitir criar fôrma qualquer pro seu mundo. Não queria vivê-lo antes mesmo de entrar em contato com ele. Já tinha isso acontecido tanto.

Contato. Queria uma vida de contatos, encontros, acontecimentos. Uma vida que volta-e-meia o fizesse de pião. Não se importaria de ser rodopiante peão da vida.

Queria queimar as coxas brancas no Sol. Viver numa montanha. Abraçar a Terra com suas coisas e gentes que o viessem a visitar - sempre de surpresa.

Mergulhar no mar ou sentir a brisa quando precisasse de força. Ou quando estivesse inexplicavelmente feliz. Dançar para a Lua, ver ela brilhar a Terra de azul. Enxergar no escuro - sua mente o mais amorfa quanto possível, a percepção oscilante - harmonia de um espírito mundano.

Conjurava o Universo enquanto escrevia, sozinho, dentro do apartamento.

Do mundo, mal sabia.

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