14 de abril de 2006

Mais do mesmo

O homem que cobra as passagens do ônibus responde a toda pergunta automaticamente proferindo o itinerário decorado no mesmo tom.

A mulher que registra as compras e não se remete a quem compra a não ser na terceira pessoa, quando fala com o gerente.

O senhor que inventa novas formas unilaterais de proferir todo aquele conteúdo importantíssimo, olha seus alunos um palmo acima das cabeças ou nos espaços vazios entre os corpos e tem em cada questão uma clara ameaça ao seu suposto saber tão duramente alcançado.

Quando eles deixaram de ser o que poderiam sempre novamente para tornarem-se suas profissões, ou qualquer outra forma segura de se relacionar com o mundo e se afastar dele? Quando eles passaram a impedir que cada situação os constituísse um outro, um novo sem abandono que a simples afetação possibilita?

Há um mendigo que cronifica seu pedido de ajuda e acaba por tornar seu corpo débil de fato, e há um que, com gosto ou desgosto, aponta o ridículo em nós que transitamos.

Minha amiga me fala das pessoas vivas que estão na verdade mortas. Mostra. Não há julgamento nisso, uma suposição de valores que mate o vivo; é justamente para o rosto do zumbi que ela aponta. Ali naquele corpo deve haver um coração que bate. Daqui por diante esse só faz por diminuir o ritmo. Mas talvez haja como fazê-lo liberto de suas artificialidades; quem sabe a cadência ainda possa variar com o compasso que lhe chegue desde a pele, os olhos, os ouvidos.

Minha amiga faz dança e filosofia. Me deixa pensando no zumbi em mim, real, potencial. Me deixa pensando em ignorar o zumbi nos outros, em sair do jogo. Talvez aquele coração perca o compasso tanto de lhe pararem o afeto no rosto magro, no lábio preso. Também quem olha se contenta com isso e perde o que está embaixo. Fico pensando num olhar pros músculos e num afeto para além deles. Me remeter a um sub-humano, super-humano. Seria também desviar do morto-vivo em mim.

Fico pensando no Zumbi, no nosso Zumbi, e como seu nome é justo para um outro lado. Quem se libertou de suas amarras morreu prum mundo que prende, e mesmo assim ele insistiu em seguir caminhando e lutando e constrangendo tanto homem branco de estrela, chicote e máscara de ferro...

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