22 de abril de 2006

A última utopia

Se Nietzsche tivesse vivido em uma praia onde só há natureza e pescadores, provavelmente teria tirado o bigode - não precisando mais esconder de ninguém seu grande sorriso. (Sim, porque, como Irene, Nietzsche ri de nós.)

Talvez, feliz assim, ele nunca mais escrevesse. Não acredito nisso. Por certo ele escrevia por necessidade, e ela deveria vir muito da sua inquietude frente a sociedade. "E quem adivinha das conseqüências que se alojam em toda suspeita profunda, algo dos calafrios e angústias do isolamento, aos quais toda incondicional diferença de olhar condena os que são acometidos dela, entenderá também quantas vezes e, para descançar de mim, como que para um temporário auto-esquecimento, procurei abrigar-me em alguma parte - sob alguma veneração ou inimizade ou cientificidade ou levianidade ou estupidez: e também porque, onde não encontrei aquilo de que precisava, tive de conquistá-lo artificialmente, falsificá-lo, criá-lo ficticiamente para mim (... e que outra coisa fizeram jamais os poetas? e para que existirá toda arte no mundo?)". Acredito, no entanto, que justamente a liberdade dessa inquitude geraria uma outra necessidade de escrever: por vida, por felicidade.

Ou então poderíamos imaginar uma ilha paradisíaca como refúgio fora do tempo e do espaço para os malditos da sociedade. Além da natureza exuberante e dos pescadores tranquilos, Nietzsche sem bigode, Espinosa, Van Gogh, Henri Thoreau, Artaud, Oscar Wilde, Reich, Timothy Leary, Deleuze, Guattari, Foucault. Mais quantos outros suicidados da sociedade! E Hakim Bey, quando de férias do seu cosmopolitismo desenraizado.

Esses homens juntos e todas aquelas maravilhosas mulheres que a História fez escapar de si e dos seus nomes em Grandes Listas e Grandes Livros, mas que os afetos nunca permitirão calar - pois as brujas falam alto em todo ouvido que escuta o vento. Simone de Bouvoir a frente das inomináveis.

Imaginem: esses seres incomensuráveis não ficariam em uma ilha como reclusão. Mas sim um lugar onde todas as suas vozes pudessem tomar ar. Eles teriam mísseis intercontinentais sem ogiva ou bomba alguma - cheios de textos, fitas, quadros, filmes, músicas - que seriam lançados casualmente ao mundo todo. Como vez que outra sairiam dando voltas pelo globo feito uma grande trupe de intrépidos mambembes a proclamar novos horizontes, cantar novas cores, sapatear novas filosofias.

E para os outros Estados (para os Estados) seriam governados por um respeitoso, muito correto, imponente e poderoso Grande Irmão, que secretamente e para eterno deleite cômico dos moradores da Ilha seria um pequeno macaco bagunceiro (ou até a estátua de um macaco com o nome de João).

A ilha seria uma utopia pirata com piratas de um ótimo outro tipo. Piratas de afetos, de idéias, de beijos e abraços - piratas por entenderem que a vida não tem propriedade e que só se reproduz e mesmo se mostra no que é de fato livre.

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Pois essa pequena utopia existe. Há de fato uma Ilha concretamente reverberando no coração puro de todo maldito que anda pela Terra. E há que haver malditos, e temos nós de sê-los. Porque não se faz nada com um pensamento que repita o que aí está, que resolva uma idéia a deixando enclausurada, e reproduzindo por dentro das grades ou em grandes blocos de concreto, caixas de papelão de mudança taxadas de frágeis, com um esse lado para cima e ainda um adesivo da FedEX.

Criar é e sempre será problematizar. Há de haver malditos que apontem o que está preso dentro da gente. Sejam eles dessa forma renegados, ou sejam (caso utilizem de uma estética mais bela ou gozem de uma época das aparências de maiores aceitações) abraçados pelo social e reproduzidos indiscriminada e automaticamente como moda (e o século deverá mesmo ser deleuziano), assim o são pelo incapturável, no âmago, de suas idéias. Surfermo-as na costa dessa inestimável Ilha. Que nos dá chão, nos dá coragem, nos dá alento, nos dá asas pra seguir, Malditos, a parte de todos os pequenos dedos.

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