O brio do texto (sem o qual, em suma, não há texto) seria a sua vontade de gozo: lá onde precisamente ele excede a procura, ultrapassa a tagarelice e através do qual tenta transbordar, forçar o embargo dos adjetivos - que são essas portas da linguagem por onde o ideológico e o imaginário penetram em grandes ondas.
(...)
"Que a diferença se insinue sub-repticiamente no lugar do conflito." A diferença não é aquilo que mascara ou edulcora o conflito: ela se conquista sobre o conflito, ela está para além e ao lado dele. O conflito não seria nada mais do que o estado moral da diferença; cada vez (e isso torna-se freqüente) que não é tático (visando transformar uma situação real), pode-se apontar nele a carência-de-gozo, o malogro de uma perversão que se achata sob o seu próprio código e já não sabe inventar-se: o conflito é sempre codificado, a agressão não é senão a mais acalcanhada das linguagens. Ao recusar a violência, é o próprio código que eu recuso (...). Eu amo o texto porque ele é para mim esse espaço raro da linguagem, do qual está ausente toda ‘cena’, (no sentido doméstico, conjugal do termo), todo logomaquia. O texto não
é nunca um ‘diálogo’: não há risco nenhum de fingimento, de agressão, de chantagem, nenhuma rivalidade de idioletos; ele institui no seio da relação humana – corrente – uma espécie de ilhota, manifesta a natureza associal do prazer (só o lazer é social), deixa entrever a verdade escandalosa da fruição: que ela poderia muito bem ser, abolido todo o imaginário da fala, neutra.
...
Na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto. O texto prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado de que fala um autor excessivo (Angelus Silesius): "O olho por onde eu vejo Deus é o mesmo olho por onde ele me vê".
Parece que os eruditos árabes, falando do texto, empregam esta expressão admirável: o corpo certo. Que corpo? Temos muitos; o corpo dos anatomistas e dos
fisiologistas; aquele qie a ciência vê ou de que fala: é o texto dos gramáticos, dos críticos, dos comentadores filólogos (é o fenotexto). Mas nós temos também um corpo de gozo feito unicamente de relações eróticas, sem qualquer relação com
o primeiro: é um outro corte, uma outra nomeação; do mesmo modo o texto: ele não
é senão a lista aberta dos fogos da linguagem (esses fogos vivos, essas luzes intermitentes, esses traços vagabundos dispostos no texto como sementes e que
substituem vantajosamente para nós as "semina aeternitatis", os "zopyra", as noções comuns, as assunções fundamentais da antiga filosofia). O texto tem uma forma humana, é uma figura, um anagrama do corpo? Sim, mas de nosso corpo erótico. O prazer do texto seria irredutível a seu funcionamento gramatical (fenotextual), como o prazer do corpo é irredutível à necessidade fisiológica.
O prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias idéias - pois meu corpo não tem as mesmas idéias que eu.
(...)
O prazer do texto não é forçosamente do tipo triufante, heróico, musculoso. Não tem necessidade de se arquear. Meu prazer pode muito bem assumir a forma de uma deriva. A deriva advém toda vez que eu não respeito o todo e que, à força de parecer arrastado aqui e ali ao sabor das ilusões, seduções e intimidações da linguagem, qual uma rolha sobre as ondas, permaneço imóvel, girando em torno do gozo intratável que me liga ao texto (ao mundo). Há deriva, toda vez que a linguagem social, o socioleto, me falta (como se diz: falta-me o ânimo). Daí por que um outro nome da deriva seria: o Intratável – ou talvez ainda: a Asneira.
(...)
O prazer, entretanto, não é um elemento do texto, não é um resíduo ingênuo; não depende de uma lógica do entendimento e da sensação; é uma deriva, qualquer coisa que é ao mesmo tempo revolucionário e associal e que não pode ser fixada por nenhuma coletividade, nenhuma mentalidade, nenhum idioleto. Qualquer coisa de neutro? É fácil ver que o prazer do texto é escandaloso: não porque é imoral, mas porque é atópico.(Roland Barthes)
15 de dezembro de 2005
O Prazer do Texto
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2 comentários:
eu estou colecionando autógrafos seus!!
por favor, me envie via fax amanha pela manhã, um formato que ainda nao tenho.
Obrigado,
estarei aguardando.
Sim, provavelmente por isso e
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