15 de dezembro de 2005

O Prazer do Texto

O brio do texto (sem o qual, em suma, não há texto) seria a sua vontade de gozo: lá onde precisamente ele excede a procura, ultrapassa a tagarelice e através do qual tenta transbordar, forçar o embargo dos adjetivos - que são essas portas da linguagem por onde o ideológico e o imaginário penetram em grandes ondas.

(...)

"Que a diferença se insinue sub-repticiamente no lugar do conflito." A diferença não é aquilo que mascara ou edulcora o conflito: ela se conquista sobre o conflito, ela está para além e ao lado dele. O conflito não seria nada mais do que o estado moral da diferença; cada vez (e isso torna-se freqüente) que não é tático (visando transformar uma situação real), pode-se apontar nele a carência-de-gozo, o malogro de uma perversão que se achata sob o seu próprio código e já não sabe inventar-se: o conflito é sempre codificado, a agressão não é senão a mais acalcanhada das linguagens. Ao recusar a violência, é o próprio código que eu recuso (...). Eu amo o texto porque ele é para mim esse espaço raro da linguagem, do qual está ausente toda ‘cena’, (no sentido doméstico, conjugal do termo), todo logomaquia. O texto não
é nunca um ‘diálogo’: não há risco nenhum de fingimento, de agressão, de chantagem, nenhuma rivalidade de idioletos; ele institui no seio da relação humana – corrente – uma espécie de ilhota, manifesta a natureza associal do prazer (só o lazer é social), deixa entrever a verdade escandalosa da fruição: que ela poderia muito bem ser, abolido todo o imaginário da fala, neutra.

...

Na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto. O texto prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado de que fala um autor excessivo (Angelus Silesius): "O olho por onde eu vejo Deus é o mesmo olho por onde ele me vê".


Parece que os eruditos árabes, falando do texto, empregam esta expressão admirável: o corpo certo. Que corpo? Temos muitos; o corpo dos anatomistas e dos
fisiologistas; aquele qie a ciência vê ou de que fala: é o texto dos gramáticos, dos críticos, dos comentadores filólogos (é o fenotexto). Mas nós temos também um corpo de gozo feito unicamente de relações eróticas, sem qualquer relação com
o primeiro: é um outro corte, uma outra nomeação; do mesmo modo o texto: ele não
é senão a lista aberta dos fogos da linguagem (esses fogos vivos, essas luzes intermitentes, esses traços vagabundos dispostos no texto como sementes e que
substituem vantajosamente para nós as "semina aeternitatis", os "zopyra", as noções comuns, as assunções fundamentais da antiga filosofia). O texto tem uma forma humana, é uma figura, um anagrama do corpo? Sim, mas de nosso corpo erótico. O prazer do texto seria irredutível a seu funcionamento gramatical (fenotextual), como o prazer do corpo é irredutível à necessidade fisiológica.

O prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias idéias - pois meu corpo não tem as mesmas idéias que eu.

(...)

O prazer do texto não é forçosamente do tipo triufante, heróico, musculoso. Não tem necessidade de se arquear. Meu prazer pode muito bem assumir a forma de uma deriva. A deriva advém toda vez que eu não respeito o todo e que, à força de parecer arrastado aqui e ali ao sabor das ilusões, seduções e intimidações da linguagem, qual uma rolha sobre as ondas, permaneço imóvel, girando em torno do gozo intratável que me liga ao texto (ao mundo). Há deriva, toda vez que a linguagem social, o socioleto, me falta (como se diz: falta-me o ânimo). Daí por que um outro nome da deriva seria: o Intratável – ou talvez ainda: a Asneira.

(...)

O prazer, entretanto, não é um elemento do texto, não é um resíduo ingênuo; não depende de uma lógica do entendimento e da sensação; é uma deriva, qualquer coisa que é ao mesmo tempo revolucionário e associal e que não pode ser fixada por nenhuma coletividade, nenhuma mentalidade, nenhum idioleto. Qualquer coisa de neutro? É fácil ver que o prazer do texto é escandaloso: não porque é imoral, mas porque é atópico.

(Roland Barthes)

2 comentários:

carilevi disse...

eu estou colecionando autógrafos seus!!
por favor, me envie via fax amanha pela manhã, um formato que ainda nao tenho.
Obrigado,
estarei aguardando.

Anônimo disse...

Sim, provavelmente por isso e