20 de setembro de 2006

Da fábula dum poema de mim mesmo

Minha tia Lena me mandou isso por e-mail, achado nos confins de seus arquivos. Já faz tempo, quase como um outro Pedro. Me diz muito, portanto, no entanto, assim mesmo, especialmente - vai saber. Se tiverem paciência (que talvez precise um tanto), sejam bem-vindos:

Um dia, acordei com um poema dentro de mim. Poema que acorda com a gente é serelepe, seja triste ou alegre quer logo pra palavra pular, e se não vamos de uma vez com ele, pula da gente e se desfaz no ar.

Mas esse poeminha inquieto não. Joguei pra cabeça ir dando forma, mas num turbilhão, forma não tomava. Tentei com a boca, mas emperrou na língua, no maxilar - e nem ao escovar os dentes, quando na escova esbarrava, quis ele sair de lá! Aí, fui tentar corrê-lo pela mão e o lápis. Mas se agarrou em algum tendão do dedo, do grafite teve medo, não queria, num drama pra não perder o sossego, não queria, como a dizer que o mundo tem seu preço, não queria, não queria ser expresso.

Não soube o que fazer, e fui viver meu dia. O poema agarrado comigo ia, e assustadiço, se jogava onde eu estivesse. Quando caminhava, lá deslizava ele, rebelde como um coelho, pruma das minhas pernas prender-se na coxa, calcanhar ou joelho. Quando eu parava, o maldito segurava bem juntos os músculos dos meus ombros, pescoço, ou então ia a dar-me nas costas cutucadas. Vez que outra, maluco, me anuviava a visão, ou tapava meus ouvidos, e me deixava perdido no meio da rua, trapalhão, caduco, quase a soltar gemidos.

Seus pontos preferidos eram minha garganta - onde agarrava minhas cordas vocais e com isso o meu falar prendia -, meu peito - que ele dava jeito de esvaziar, e na minha ansiedade insistia - ou minha barriga, onde sentava no meu estômago ou andava feito formiga, e ficava me dando calafrios com seu respirar gelado dando rodopios.

Mas como o poema foi ficando, acabei me acostumando e esquecendo - suportar é uma marca triste dos seres humanos, mesmo os mais ermos. O poema lá ficava, bem grudado, e eu, transviado sem saber, de nada estranho me apercebia, e não contava com a folia pra tentar dele dar conta: o poema se espalhava pela minha pele e, como onda que a rocha vence, não tinha toque que me vinha animar, a ela arrepiar, a fazê-lo acabar com esse suspense.

O poema indigesto de nada queria saber. Mas não era maldoso não, coitadinho... Era como um menininho olhando pela janela pra montanha onde o sol batia. Sonhava o poema poeta, fazendo rimas que não chegava a dar reta, e esperando um terremoto que fizesse das suas próprias paredes poeira - ou um dragão que, ameaçando família inteira, o fizesse sair pra luta. No mais, esperava a visão da princesa no castelo encantado de altos muros, e aí contava com sua força imensa para quebrá-los ou, se muito duros, a eles escalar - e morria de medo que seus músculos de poema não dessem conta da tarefa justamente quando ao descortinar a janela a princesa estivesse.

Depois de muito tempo e muito sonho, acho que o poema dormiu. Só andava por mim sonâmbulo - como a areia que o Homem dos Sonhos assopra em nossos olhos quando os fechar ele não viu. Ou como ferrugem em alguma articulação. Eu já há muito não lembrava dele, e tentava sair voando com outros poemas, mas poucos, com meu novo peso de poema preso, me tiravam do chão.

Acho que foi sorte ter ido mexer justamente onde o poema estava - mesmo que ele tapasse meus olhos com lentes coloridas, e ficasse o tempo todo jogando flores na minha cabeça encolhida. Foi preciso apenas um abraço - e ainda um tão esperado que, insuspeito, saiu torto! - pra que o poema-bicho-preguiça explodisse, num assopro, em mil pedacinhos. E de tão brusco que destravou do meu corpo, me deixou como que sozinho, inquieto, sem jeito de ser.

O poema vôou, virou mais que poesia feita. Perdeu seu jeito coeso de se prender a mim e virou o que sempre fora - rara força, intesidade a espreita. Só que tinha se tornado - o quê? ferramenta? agulha? saco de pedras? invisível fantasia? Não importa... Tinha se tornado coisa a pedir explicação, peão da própria vontade de se assegurar desse mundo vasto que possível não parecia.

Os pedacinhos do poema viraram poeira, ar pra respirar, energia. Se espalharam por cá, como magia, em todo lugar e em lugar nenhum. O meu corpo ainda o absorve, devagarinho, e o processo vai se entendendo: percebendo que o poema, com seu medo, peso e esquema, não era nada mais do que eu mesmo.

E aí descubro, como uma ciência de colorir mundo, que não quero mais ser poema. Nem pra ter palavra bonita, como a tentar ter vida e sentimento e justamente da vida e do sentimento estar a revelia. Não, não dá. Eu já soube uma vez, um dia: acho que desde sempre, mas a lição tomou corpo quando um outro abraço fez-se presente; um bem dado, de antes do poema nascer - abraço de abrir, de deixar-se ir, virar mundo noite e dia.

Não... não quero ser poema. Já soube uma vez: quero... é ser poesia...

2 comentários:

Anônimo disse...

que texto maravilhoso, pedro. fiquei chocada me deliciando ao ler :)

ah, eu lembrei de uma coisa, que pode não ter muito a ver mas lembrei e deu muita saudade. o adriano falando pra gente massagear bem a nuca porque era ali que se escondia "o bicho" :)

beijos

G disse...

bem bonito, e triste; essa angústia entre ser e produzir (ó). coisa quew pode ser clichê existencialista de adolescente, mas tu processou de uma forma "filosofia da composição" a la Poe; curti :)