22 de novembro de 2005

Referendados e Reduzidos (ou Manifesto por Temperos da Vida Contra a Indigestão do Estado)

o que eu vou escrever aqui começou com um comentário na postagem army of me, mas aí achei que dava pé pruma postagem própria...

foi-se o referendo. e agora, José? a primeira coisa que me ocorre é perguntar o que a gente faz com todas aquelas discussões que tivemos antes da categórica votação. a idéia do referendo parece ser apoiar-se na opinião do povo para tomar uma decisão legislativa. antes da votação, eu me perguntava o que isso poderia trazer de mudanças. teoricamente, consultar o povo parece uma ferramenta democrática importante, mas, na minha teimosia incrédula - auxiliada pelo momento de tensão política em que diz-se aos jornais: uma outra manchete é possível -, ficava perturbado ao ver que informações sobre cada uma das opções traziam as propagandas, o quão estranhamente estava formulada a pergunta, coisas assim... mas pensava também que simplesmente sendo feita a questão tornava-se possível, pela polêmica, discussões que porventura pudessem trazer consigo alguma crítica.

vejam, me importo pouco com o decidido pelo instituído, se comparado com uma outra coisa, que é a cultura: como tomamos tudo isso, como lidamos com isso, de que formas estamos apreendendo essas regras, vivendo com elas. se a situação da sociedade mundial me deprime, fico mais preocupado com as possibilidades culturais de lidar com os problemas, porque é aí que está a vida e o viver, na sua teia mais democrática. e justamente pela idéia de que nossa cultura é um porre, cultura burra do esquecimento, que penso visceralmente estar na revolução cultural - conceito já tão batido, mas que me parece ser constantemente esquecido - qualquer possibilidade verdadeira de mudança.

então tinha lá eu minha esperança que a grande força do referendo não fosse o resultado do apertar de botões, mas sim a polêmica causada pela pergunta. eu devia ter me segurado mais na desconfiança que me despertava o vazio das discussões sobre essa polêmica - aí, não ficaria tão decepcionado. deveria ter me dado conta que não há abertura possível para crítica numa pergunta cuja única resposta possível está numa opção absurda entre sim ou não - e no continuado e muito suspeito comportamento de nunca se falar da opção 3, nunca, em propaganda explicativa de votação alguma!

o que eu não imaginava é o que foi-me apontado após o resultado: agora, todos sabemos que o Brasil é um país onde 80 e tantos por cento da população é contra a proibição da comercialização de armas de fogo. tudo bem, vivemos em um país que ainda acredita na posse e no uso de armas de fogo. não é tão absurdo olhando-se o mundo, e temos bons e maus exemplos disso - sendo os segundos amplamente mais numerosos, é claro. mas e como ficaria se, como está sendo apontada como uma possibilidade, o que fosse referendado fosse temas como "proibição do aborto" ou "casamento gay"?

está claro para mim que o tal do referendo é uma das armas mais poderosas para a reacionarização da população. com sua redução imbecil de toda uma importante discussão aquele apertar de botões, não se permite nenhum avanço ideológico, e qualquer idéia de revolução cultural advinda dele toma o corpo de um golpe de estado militar e moralista. que mudanças que são possíveis daí? nenhuma, senão, e muito fortemente, a cristalização de opiniões e de jeitos, o encarceramento de viveres...

é o velho entendimento idiota de democracia como sendo uma ditadura da maioria... a imposição aos poucos do que acham os muitos. mas os poucos também são vários... há que haver uma minoração da política, a possibilidade de construirmos culturalmente uma visão da democracia que tome sua força nas minorias, que possibilite as minorias, e várias delas; uma sociedade que seja de todos, e não de um todo, e não totalizante. seria de se esperar, como dizem por aí, que o Brasil, com sua miscelânea étnico-cultural, já tivesse isso incrustado em sua forma de ser, mas talvez seja justamente por essa miscelânea, ou ao que ela poderia dar força se suas potências deixassem de habitar apenas um inconsciente impossibilitado de ser expresso (e não apenas para tomar uma forma consciente, conscientizado, mas também para permitir que o que segue oculto possa vir a tona, sempre venha a tona e seja sim parte da criação do mundo), talvez seja justamente porque habitamos uma mesa com muitos pratos de culinárias tão diversas que os poderes instituídos sempre tendem a tapar essa diversidade com um discurso de "pão para todos"; porque os poderes instituídos, ao contrário do povo cheio de indivíduos famintos de novas experiências, tem um estômago fresco e indigesto.

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