16 de dezembro de 2004

desaparições

me é comum pensar no desaparecimento como uma forma de ação política, uma possibilidade de intervenção, ou uma tática que possibilita a intervenção. creio que em mais de um livro da Baderna isso aparece, uma forma de agir, o desaparecer como a ação dos homens sem-rosto (e por aí vão Luther Blisset & Wu Ming, e até mesmo os zapatistas). mas aí me deparei com o Galeano, no seu triste e belo livro "Dias e Noites de Amor e de Guerra"... e aí me dei conta, com um frio na barriga, dor no coração, arrepio nas costas, que há outros desapareceres, e que cabe termos idéia deles, pensarmos neles, quando estamos exercendo nossa artepolítica cotidiana... em verde, as palavras são minhas, metidas pensadoras remetidas ao texto:

"Nas câmaras de tormento, os torturadores almoçam na frente de suas vítimas. [lembra a vocês os belos jantares em restaurantes envidraçados?] As crianças são interrogadas sobre o paradeiro de seus pais; os pais, pendurados e eletrocutados para que digam onde estão seus filhos. [a TV faz da possibilidade do ato um crime; a vigia hoje me parece mais subjetiva, sutil, e na aparente repressão reduzida está um peso incômodo. falta companheirismo nas famílias, falta um compartilhar, sobra o medo do risco do moderno, de todas essas coisas que ameaçam nas novelas e jornais. uma certa paranóia cultural de substância e explicidade diferentes] Noticiário de cada dia: "Indivíduos vestidos de civil com os rostos cobertos por máscaras negras... Chegaram em quatro automóveis Ford Falcon [N. do T.: Veículo utilizado pela polícia civil na Argentina]... Todos estavam fortemente armados, com pistolas, metralhadoras e carabinas... Os primeiros policiais chegaram uma hora depois da matança". [fico pensando que a mídia nem chega tão perto hoje em dia...] Os presos, arrancados das prisões, morrem na lei da fuga ou em batalhas onde não há feridos nem baixas do lado do exército. Humor negro de Buenos Aires: "Os argentinos", dizem, "estamos divididos em enterrados e desterrados". A pena de morte foi incorporada ao Código Penal em meados de 1976; mas no país se mata todos os dias sem processo ou sentença. Em sua maioria, são mortos sem cadáver. [e mortos de fome, de frio, de abandono...] A ditadura chilena não demorou em imitar esse procedimento bem sucedido. Um único fuzilado pode desencadear um escândalo mundial: para milhares de desaparecidos, sempre resta o benefício da dúvida. [quando o poder ficou menos pontual e mais nômade, globalizado, essa possibilidade de escândalo mundial reduziu em muito; ainda há os clamores internacionais que geram resultados - os zapatistas tiveram sua guerra aliviada em muito com a visibilidade que alcançaram, o apoio de fora de seu país -, mas ele é um tanto mais difícil quando absorvido pelos meios normais de denúncias, pela burocracia, e pela mídia institucionalizada, marionete.] Como na Guatemala, parentes e amigos realizam a perigosa peregrinação inútil, de prisão em prisão, de quartel em quartel, enquanto os corpos apodrecem nos baldios e nos depósitos de lixo. Técnica das desaparições: não há presos que reclamar nem mártires que velar. Os homens, a terra engole; e o governo lava as mãos: não há crimes que denunciar nem explicações para dar. Cada morto morre várias vezes e no final só resta, na alma, uma névoa de horror e incerteza." [a hegemonia me parece menos forçada hoje; o poder, não sendo mais tão claro, aproxima-se do poder cultural: é o poder da subjetivação. não há presos a reclamar porque está claro para todos que, se está preso, por mais injusto que isso sinta, é o jeito que as coisas são, justiça clara. medo do caos? estamos entregues...]

Um comentário:

Anônimo disse...

desaparecer...aquela capa encantada sobre os ombros e o capuz na cabeça bastavam... e num passe de mágica a invisibilidade tornara possível estar em qualquer lugar sem ser notado. Inevitável sentir "criança-selvagem". Desaparecer aqui e aparecer ali, ser puro piscar de olhos, impossível apreensão,movimento. E a cada aparecimento já não sou mais a mesma. Irreconhecimento. E o melhor de tudo isso é se reinventar diante do sumiço. Causar conflito e não ter idéia onde está a prova de que existo.